O destino me salvou de uma profissão ingrata
O destino me salvou de uma profissão ingrata
Por uma série de razões, fui levado a desistir do curso de psicologia. Fiquei triste pois é difícil entrar numa faculdade federal. Eram 130 km todo dia, de moto, a não ser quando algum colega muito gentil me acolhia.
Primeiro, me livrei de ser expulso do Conselho caso algum aparelho qualquer gravasse uma sessão nossa. Sigilo profissional é uma regra da psicologia que está em vias de deixar de existir pois todo mundo leva consigo um gravador portátil – vulgo aparelho celular.
Segundo, me livrei por não precisar, enquanto cidadão do mundo, me ajustar ao jargão e às categorias de uma quase-ciência tão recente. De Pavlov até hoje, muito já se mostrou que não ser científico não é demérito. É bom poder me exercitar em outros “idioletos”, como sugeriu um pedagogo cujo nome esqueci. Toda área de estudo tem seu “idioleto” e eu pude ficar com uma linguagem menos técnica sobre a existência.
Terceiro, tendo uma origem estritamente obreira, eu mesmo e minha família, seria uma decepação, isso mesmo, decepação, abrir mão de toda teoria que busca na materialidade das relações de trabalho a causa das tristezas e angústias humanas e ser obrigado a ser encarado como um “terapeuta vermelhinho”, como se isso diminuísse o horizonte existencial de alguém. Deixar de ver as relações colonizadas em prol da ética sensualista de Freud em nome de reconhecimento profissional seria muito duro. O organograma das empresas não evoluiu em termos de soluções autênticas: o psicólogo não tem o poder de dar um bônus para o empregado.
Em quarto lugar, seria muito difícil ser terapeuta sem ter, eu mesmo, certeza alguma sobre o valor inerente de qualquer vida humana. Se ouvisse algumas coisas em consultório, talvez preferisse dizer “se mate” do que “tente ver por outro lado”. Tenho minhas dúvidas sobre a bioplasticidade moral. Educar crianças é mais promissor para quem quer mudar o mundo do que exercer a função terapêutica. Para mim, salvar uma vida só pode ser algo levado a sério no anonimato: me deparo com um corpo inerte no supermercado, faço análise primária, e se necessário, pressões cardíacas e insuflação. Mas a partir do momento que um cidadão confessa ser vil, sádico, indiferente, ou deixa isso transparecer, não sei para onde gostaria de encaminhá-lo. Certas coisas não têm cura nem solução.
Em quinto lugar, como terapeuta chancelado pelo Conselho Federal, eu jamais poderia recomendar uma passagem bíblica. Isso seria uma violência contra mim mesmo pois fui educado no catolicismo e as Escrituras já me salvaram muitas vezes, de mim mesmo e do árido mundo que nos abriga.
Em sexto lugar, boa parte das queixas que vejo serem comuns ao gênero humano (e com as quais sofri), excetuando-se as questões de ordem sobrevivencial e amorosa, muitas vezes parecem superficiais. Um adolescente que não trabalha se queixar de não ter um vídeo-game X, Y ou Z me pareceria tão banal, me faria me sentir muito desgostoso com minha profissão. A psicologia tem invadido o domínio da ética e da moral familiar. Os pais terceirizam a educação de seus filhos e a primeira figura que surge nesse vácuo moral é o terapeuta. As questões de amor, junto com as sobrevivenciais, parecem ser relevantes e sérias. Mas eu não poderia recomendar a sumidade nessa matéria, de um lado, a Bíblia, de outro o Kama Sutra, sem perder a confiança de meus assistidos. O risco de parar num jornaleco qualquer como um guru excêntrico é real.
Em sétimo e último lugar, nesse breve texto, está uma questão de ordem prática. O sofrimento humano merece uma atenção e cuidado individualizado e meticuloso. Nossa rede pública de saúde o jogou na conta da “terapia grupal”. Ou seja, o governo quer produzir mais e mais super-heróis. Não bastavam os professores com 400 alunos, as enfermeiras e médicos com pacientes superlotando os corredores, agora querem ver até onde vai a sanidade mental dos psicólogos também. Querem comprovar o ditado “casa de ferreiro, espeto de pau”.
Aos que se formaram, meus parabéns: vocês serão provados no fogo. O trabalho de vocês é importante e é possível crer que nas próximas décadas, em alguns ambientes gerenciais, boa parte das críticas que faço aqui já terão sido contornadas, pelo menos em parte. Perseverem no seu excelso desígnio de ajudar o próximo. E eu vou precisar de vocês em algum momento pois “De perto ninguém é normal”. E eu, nem de longe sou mais normal.

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