Não há cristão autêntico - mas autenticamente buscamos o Cristo




 Não há cristão autêntico - mas autenticamente buscamos o Cristo

        Do ponto de vista ético, é fabuloso um sistema de crença que ensine o perdão, o amor, a bondade. E o cristianismo preenche todos os requisitos para essa função. Se é irracional em suas fabulações é outra história. O que nos interessa aqui é o que ele se propõe enquanto programa. Vamos esquecer deus-pai-filho-pão. Deixemos de lado o hímen de nossa senhora.

        De um muçulmano podemos esperar uma atitude guerreira. Do judeu a mesma coisa. Já o cristão, por definição é um ser pacífico. Isso seria apenas medíocre não gerasse santos. Pois é. Para quem não acredita, existem seres que foram além da limitação da matéria em virtude dessa crença. Parece vantajoso. Abrir mão da vingança e ser vingado por Deus. Deixar de lado a maldade e assumir forças misteriosas. Não é de todo mal.

        A negação da animalidade é tema consagrado desde Nietzsche, que chamou o cristianismo de negador da vida. Deixar de escanteio uma boa noite de sexo ou negar o convite da churrascada, aceitar calado os desmandos de um chefe obtuso, tudo isso estaria no pacote. Sofrer calado. Voltar-se ao invisível quando o mundo pede uma resposta imediata. Por isso Nietzsche também chamou o cristianismo de platonismo para o povo. Como todos sabem, Platão dava enorme privilégio ao imaterial em seu pensamento. Daí entende-se a expressão. Mas Nietzsche não criticou apenas a base gnoseológica do cristianismo, levando a reboque a moral ascética; desacreditou o próprio amor em si, como lemos em “Para além do bem e do mal”.

    Entendido o amor como o próprio espírito santo, nosso querido Friedrich, tão preciso em suas críticas, pode estar numa enrascada e tanto – se assumirmos o axioma bíblico de que ofender o santo espírito não tem perdão. É o único pecado sem perdão... Enquanto o "espírito" parece um fantasminha, tudo vai bem. Ninguém fala mal de fantasma, não é mesmo? Mas se entendermos o espírito santo como a própria postura de bem querer, o sumo bem, a beatitude, como falou Santo Agostinho, aí então teremos uma enorme fila de “malfeitores convictos” e uma porção considerável de gente que reza o terço mas nega um pão com manteiga para a empregada. Ou esconde a mortadela do pedreiro.

    A superficialidade ou consciência burguesa levam a absurdos consideráveis. Gente que ama seus privilégios, não abre mão de nada e ainda tem coragem de pregar... os antigos inquisidores são famosos por apreciarem seus vinhos em castelos e exigir coerência de quem ousava ser cientista. Hoje temos fenômenos análogos. O neo-inquisidor que dá falta pro peão em dia de greve no metrô. O outro neo-inquisidor que teve uma juventude de liberdade mas caça como uma bruxa a mulher que não casa virgem. Tem ainda aquele que exige dos outros a correção mas pratica a iniqüidade. Esses são numerosos. Vão desde os cervejeiros de esquerda que cerram os olhos à fome na África até os empresários que recebem auxílio público e defendem estado mínimo. 

Com todas as dificuldades, ainda assim vale como um norte, o cristianismo. Um mote. Um objetivo. Porque se todos fizessem o bem para o próximo, teríamos uma revolução autêntica sem o derramamento de nem uma gotinha de sangue. Mas como sugerem os autóctones andinos, com o Tinku, talvez a gente queira mesmo, é se espancar periodicamente.

Lucas Furió já apanhou e já bateu. Está convicto que, assim como existe a "corrente do bem", existe a "corrente do mal", em que, uma vez agredido, quer-se agredir.

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